Última actualização 25-04-2003
Textos Políticos
© João Menezes de Sequeira e
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CLONE - ENOLC © Pedro Marge Lobo 02-04-2001
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No Diário de Notícias, de 16 de Fevereiro de 2001, vinha, como notícia de 1ª página, a possibilidade da clonagem humana, notícia posteriormente desenvolvida na pág. 22. Dizia o referido artigo que um ginecologista italiano Severino Antinori pensava produzir um primeiro clone humano, já para o ano que vem. O cabeçalho da pág. 22 introduzia o espaço geográfico da notícia, a “vizinhança” entre o consultório do referido Médico e o Vaticano. Não se pode negar uma certa estranheza e familiaridade nesta proximidade, cheia de analogias, que lembra a aproximação realizada pelos rituais sacrificiais. Por um lado, uma distanciação de substâncias (ciência e religião) e de conteúdos (razão e fé), por outro lado, uma proximidade geográfica (Vaticano e Consultório) e temática (o corpo e a alma). Esta estranheza acentua-se mais quando sabemos que o Doutor Ginecologista é católico. Como se, o pecado mortal (conhecimento) se tivesse aliado em sacrilégio à santidade (fé). Mais recentemente, o DN de 30 de Março, na sua secção “ciência e ambiente”, página 24, noticia que uma “seita”[1] americana, os “raelianos” (cujo povo eleito é extraterrestre e de quem somos clones) têm, nada menos do que, uma empresa genética (Clonaid) e estão já a trabalhar desde Dezembro, na clonagem humana. Pesem embora os esforços tardios (e sempre baseados em argumentos reaccionários) dos “legisladores americanos”, da FDA (Food and Drug Administration) e dos cientistas Ian Wilmut e Rudolf Jaenisch da Science (publicação de reputação internacional), a clonagem continua a perseguir o ocidente. Aliás, toda a ciência genética abre a porta, com a famosa lei de patentes, para a possibilidade de manipulação do genoma para fins sempre indefinidos e sempre de objectivos pouco transparentes ou flutuantes (para usar a terminologia de mercado). O que é afinal a clonagem? O que motiva aquela selecção cientifica mascarada de “pharmakon[2]”? Que utopia procura a clonagem converter em real? O que os cientistas nos informam, para lá da habitual fraseologia técnica, é de que se trata de um processo laboratorial que permite, por congelamento e manipulação nuclear do ovócito feminino, a constituição de um ser gerado pela informação genética de um outro ser, do qual é a “cópia”. O que Severino confessa (ali nas proximidades do confessionário), sem qualquer pudor, é a possibilidade de um Homem poder ser criado partindo apenas de um único ser, mas em que a topologia nos faz associar a relação entre Jesus-homem e Deus. Essa deterioração original, que subtrai da análise a necessidade vital do movimento de unidade da diferença, é responsável pelo desenvolvimento de uma cópia, de uma entidade a que cinicamente damos o nome de Clone[3]. Uma espécie absurda de predestinação do corpo, já que anula o seu próprio tempo orgânico e realmente genético, quando o reconstrói indefinidamente no espaço-tempo (teoricamente não existe um tempo limite nem um número específico para as clonagens). Um verdadeiro empobrecimento orgânico[4], digno de um futuro manual de aberrações comportamentais humanas da nossa triste época, é, sintomaticamente, apresentado como um “milagre” da ciência e do nosso “divino” domínio da vida[5]. Em termos de parentesco, o novo ser não é filho daquele de que é clone, é uma espécie de irmão, pois na realidade ele tem, pelo menos genéticamente, os mesmos pais, embora não necessite deles vivos ou em idade de procriação. O clone é a cópia de um irmão, é um verdadeiro gémeo “univitezóide”[6]. Filho de um evento congelado, do e no espaço-tempo, ele foge a todas as formas de parentesco conhecidas pelo Homem, excepto à de “gémeo univitezóide”. Na realidade ele foge do próprio Tempo Histórico e Antropológico, pelo seu relançamento contínuo num ponto do futuro. A acção erótica da fecundação, que tende à união da diferença, para a criação de uma nova unidade é tornada abstracta, isto é, é substituída por uma manipulação técnica racional e analítica. O que pode significar um ser que nasce de uma abstracção do movimento da sexualidade e do prazer? O que sentirá o ser cuja origem tem aquela proveniência abstracta, o ser que não tem em si senão uma representação de um trabalho? Que procurará o Clone? Todas as antevisões desse futuro ficam com toda a certeza aquém do que ele pode ser? Ou ele já o é? Em geral temos tendência para pensar a clonagem como uma relação de descendência, mas isso é errado, pois a descendência implica sempre uma origem dupla, uma diferença genética original e final. O clone nasce de uma unidade genética, nasce do “já criado” e por isso podemos dizer que ele perde a sua origem e consequentemente o seu fim. Digamos que a diferença entre um ser humano comum e um clone é o que diferencia a vida com origem no espaço-tempo antropológico e logo histórico, da vida com origem num espaço-tempo cíclico de trabalho. O primeiro pode pertencer à Humanidade, o segundo, apenas à sua Representação[7]. Mas é exactamente como Representação que ele se aproxima da Religião. O congelamento arbitrário de um instante reprodutor na cadeia do desenvolvimento antropológico do homem, é a possibilidade de criar uma autêntica irmandade que “habita[8]” um mesmo corpo. Do mesmo modo a “Representação Clone” e a “Textualização Genética” ao fixarem um evento permitem, cada uma a seu modo, a criação de uma separação temporal pela presença de uma ausência e consequentemente, a criação de um significado (um elo de comunicação abstracto, motivado pela sensação de uma separação[9]). O ser original (o modelo) pode desaparecer fisicamente mas não idealmente, isto é, pode suspender a sua vida no tempo cíclico das suas reencarnações, reaparecendo assim de modo abstracto, como origem de todas as suas vidas (os seus clones). Este projecto, que à primeira vista parece não só absurdo como fatal para a humanidade, arma-se de dogmas científicos que provêm dos dogmas da fé que contesta, pois essa é lei da similaridade que alberga o nosso cientista clone de clones. O tempo Humano é relativo ao conjunto dos eventos sociais e antropológicos da humanidade, o tempo do Clone e do Produzido, é o tempo circular e simbólico do mito (empirico). Até à data, a reprodução orgânica, aquela que tem milénios e permitiu o próprio nascimento e evolução do Homem, devia-se à existência contínua de diversidade, logo na origem. O tempo simbólico do Clone anula todo o tempo como diferença, pois ele é a manifestação de uma eternidade que teima em sacrificar o corpo da própria humanidade.[10] Implicitamente, na referida notícia jornalística, surge o nível da psicologia individual. O clone não será psicologicamente uma cópia exacta da sua origem-modelo, pois as suas apreensões ou conhecimentos do mundo partem de experiências diferentes. Mas também não é claramente diferente da sua origem, pois parte das mesmas “estruturas”, “potencialidades”, “factores fisiológicos determinantes”, ou “representações disposicionais inatas”, que deverão ser iguais. Num hipotético Mundo de Clones, a experiência de apropriação do mundo, que é sempre subjectiva, passaria a estar orientada pela comunhão de “representações disposicionais” iguais em todos os seres, determinantes de uma mesma “qualidade” e selecção dos estímulos. Pelo que, somente a variação em grau do estímulo, permitiria a formação de certas diferenças ao nível sentimental. A miragem do clone é a de um ser que vive num tempo circular infinito, integrado numa irmandade que repete de modo finito a experiência de apropriação do mundo produzido como reserva infinita de diferença a consumir. Um mundo arcaico e tão actual, onde o homem se diferencia do seu “igual” pela quantidade de experiências diferentes que possui, na qual o objecto (da experiência) recebe a luz mágica que transfere qualidades para quem o possui. A clonagem é sem dúvida uma imagem simbólica dos nossos tristes tempos, daí o fascínio daquela “vizinhança” ao Vaticano. Já terá havido “Julgamento Final”? Estará para acontecer a Ressurreição dos Mortos? Nos homens é mais forte o sintoma “é de facto uma discriminação” diz Severino. E a Igreja ali tão perto. [1] Seita é o termo pejorativo que se usa para todas as formas religiosas humanas que não sejam dominantes ou aceites pelo sistema. [2] Termo platónico que aqui pode ser associado à ideia de panaceia para todos os males medicinais. [3] Lembrando o termo grego, clonos, que se refere às “contracções espasmódicas nas epilepsias histéricas”, aos “espasmos ou contracções espasmódicas, em que há movimentos irregulares e involuntários”. No Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo. [4] Basta pensar nos problemas que têm vindo a lume nas experiências com clones animais, malformações, elevada taxa de mortalidade, problemas dos sistemas imunológico, renal, circulatório, etc. e que são em geral ocultados pela imprensa oficial e pelos paladinos da clonagem. Mas, ao nível antropológico, os problemas ainda são maiores pois as consequências, de uma paragem no desenvolvimento temporal do ser humano, podem vir a ser responsáveis por incapacidades de adaptação, de um sistema do passado, a um mundo, agora finalmente do futuro, permitem antever o fim da própria humanidade. [5] A desculpa (o seu grau de verdade) é sempre uma necessidade de um qualquer pobre ser, é a pronta ajuda dos laboratórios ocidentais para aquele rentável problema, que por isso não deixa de ser real. A existência de um problema, cuja expressão comparada com os restantes problemas da humanidade seria de 0.0001%, torna-se na possibilidade de uma investigação que leva hoje a um investimento exorbitante de recursos económicos. Este excedente de recursos esconde uma delapidação, é a delapidação do próprio corpo humano que depois de tornado mercadoria, deve ser recriado e exorcizado. E no entanto, todos sabemos que o problema da esterilidade, da incompatibilidade, da morte prematura, etc. que resulta na impossibilidade de um casal poder ter filhos consanguíneos ou simplesmente ter aquele filho morto, não tem na clonagem a única solução, esta é apenas uma entre muitas outras possíveis. Não cabe aqui inventariar o inumerável leque de outras soluções, ou mesmo pensar na hipótese de outros níveis de relacionamento, apenas verificar que a escolha daquela solução e não de outra, nunca é inocente e recai sempre nos ombros da sociedade que a escolhe e a deixa escolher. [6] A expressão não existe, pelo que é necessária uma explicação sem outras pretensões do que a de introduzir um certo humor negro. Os gémeos podem ser univitelinos (nascidos da dupla fecundação do ovo feminino, que por sua vez se divide em duas células diferenciadas apenas pela diferença dos espermatozóides) ou bivitelinos (nascidos da fecundação de dois ovos em presença no momento da concepção, diferenciados no óvulo e no espermatozóide), fazendo-se sempre a diferença pelo lado feminino do óvulo (daí o termo vitelinos). Este novo gémeo só se pode designar por univitezóide nascido da múltipla fecundação do mesmo ovo feminino pelo mesmo espermatozóide. [7] Representar significa tornar presente uma ausência segundo um processo de transcendência temporal e nesse sentido é uma contrafacção. Tanto uma imitação, como uma máscara que sacralizam, num o objecto existente, na outra a própria face humana, dando-lhe uma nova vida. Uma segunda vida para uma mesma origem. [8] Hábito, m. Costume. Uso. Vestuário. Roupagem de Frade ou Freira. Aspecto, aparência. Insígnia de Ordem militar ou religiosa. (lat. habitus). Definição retirada do Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, Vol. II (H a Z), 24ª Edição, Bertrand Editora, Lisboa, 1939. [9] Sobre este assunto, remeto para a minha argumentação na dissertação, “A cidade Colagem e a Cidade evento – contribuições para o estudo do Significado dos Textos Urbanos” que apresentei no Mestrado de Desenho Urbano, no ISCTE. [10] O sentimento de sublime que a ciência e a técnica divulgam no clone, é o mesmo sentimento que está na miragem dos espelhos, que aqui é a de uma sociedade que teima no seu próprio objecto, o de se reproduzir indefinidamente a si própria.
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CONTRIBUTOS PARA A CRÍTICA DA MERCADORIA © João Menezes de Sequeira 20-12-2002
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1. A mercadoria segundo Marx:
A mercadoria apresenta-se, segundo Marx, sob um duplo valor, o valor de uso e o valor de troca. Somente neste duplo aspecto o objecto se transforma em mercadoria.
1.1. O valor de uso O valor de uso é definido como o conjunto de propriedades que contém a soma das possibilidades da utilização de um objecto. Ainda que objecto de necessidades sociais, ligado ao todo social, “o valor de uso não exprime nenhuma relação social de produção”[1], para o valor de uso é indiferente a mercadoria ter sido produzida por um escravo, um servo, uma máquina, etc. A mercadoria necessita de ser valor de uso, mas o valor de uso não necessita de ser mercadoria. “Quando o valor de uso é indiferente a toda a determinação económica formal, quer dizer, quando o valor de uso é tomado como valor de uso, não entra no domínio da economia política. Apenas quando constitui ele próprio uma determinação formal entra nesse domínio. Constitui então a base material, sobre a qual se manifesta de modo imediato uma relação económica determinada, o valor de troca.” “Os valores de uso são, de modo imediato, meios de subsistência.”[2] O valor de uso da mercadoria apresenta-a não apenas com diferenças objectivas derivadas da sua substância particular, como a apresenta no processo de produção com a forma de diferenças de actividade. O valor de uso é, também considerado como a satisfação de uma determinada necessidade humana. “Ao admitir o valor de uso da mercadoria, supõe-se a utilidade particular, o carácter determinado e sistemático do trabalho que ela absorveu; mas do ponto de vista da mercadoria estas considerações esgotam todas as referências a esse trabalho enquanto trabalho útil. O que nos interessa no pão enquanto valor de uso são as suas propriedades alimentares, e nunca os trabalhos do rendeiro, do moleiro, do padeiro, etc.” E mais adiante explicita, “o trabalho criador do valor de uso é, por seu lado, um trabalho concreto e particular que, consoante a forma e a matéria, se divide numa variedade infinita de géneros de trabalho.” [3] Assim a “utilidade de uma coisa transforma essa coisa num valor de uso”[4] e essa utilidade é “determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, não existe sem ele. O próprio corpo da mercadoria... é, consequentemente um valor de uso, e não é o maior ou menor trabalho necessário ao homem para se apropriar das qualidades úteis que lhe confere esse carácter”, assim é o corpo da mercadoria que constitui “o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dessa riqueza.” Por outro lado “os valores de uso só se realizam pelo uso ou pelo consumo.” [5] Marx insiste na independência do valor de uso e do trabalho concreto que lhe dá utilidade quando considera que uma “coisa pode ser um valor de uso e não ser um valor: basta que seja útil ao homem sem provir do seu trabalho. Assim acontece com o ar, prados naturais, terras virgens, etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano e não ser mercadoria. Quem pelo seu produto, satisfaz as suas próprias necessidades, apenas cria um valor de uso pessoal [mas não uma mercadoria]. Para produzir mercadorias, tem não somente de produzir valores de uso, mas valores de uso para os outros, valores de uso sociais... Para ser mercadoria é necessário que o produto seja transferido para outrem, que o utilize como valor de uso, por meio de troca.[6] Assim uma mercadoria tem sempre um valor de uso, mas nem todas as coisas que têm valor de uso são fruto do trabalho humano assim como nem todos os valores de uso que têm trabalho humano são mercadorias. Por outras palavras sendo o valor de uso, uma das condições da mercadoria, o seu suporte material qualitativo, a mercadoria não esgota o valor de uso dos objectos. “Não é correcto dizer que o trabalho criador de valores de uso é a única fonte da ... riqueza material. Ele é a actividade que adapta a matéria a este ou àquele fim, ele pressupõe pois necessariamente a matéria. A relação entre trabalho e matéria natural é variável segundo os diferentes valores de uso, mas o valor de uso encerra sempre um substrato natural. Actividade sistemática visando a apropriação dos produtos da natureza sob uma ou outra forma, o trabalho é a condição natural do género humano, a condição – independente de qualquer forma social – da troca de substâncias entre o homem e a natureza.”[7] A actividade produtiva particular, “determinada pelo seu fim, modo de operação, objecto, meios e resultado” (...) “que se manifesta na utilidade ou valor de uso do seu produto chamamos nós, muito simplesmente, trabalho útil.” Assim como o fato e o tecido são duas coisas úteis diferentes, [valores de uso qualitativamente distintos] também o trabalho de alfaiate que faz o fato se distingue [qualitativamente] do trabalho do tecelão que faz o tecido.”[8]
1.2. O valor de troca Segundo Marx o “valor de troca aparece em primeiro lugar como uma relação quantitativa, segundo a qual os valores de uso são permutáveis entre si.”[9] É assim que uma determinada mercadoria tem um valor igual a outra determinada mercadoria e pode por ela ser trocada. Ora esse valor, essa equivalência é um terceiro “que, em si mesmo, não é nem um nem outro.” Esse terceiro não é um valor de uso pois “é evidente que na troca se faz abstracção do valor de uso das mercadorias, sendo a relação de troca caracterizada precisamente por essa abstracção” [10]. Ora, se nos “abstrairmos do valor de uso das mercadorias, resta-lhes uma única qualidade: a de serem produto do trabalho. Então, porém, já o próprio produto do trabalho está metamorfoseado sem o sabermos. Com efeito, se abstrairmos do seu valor de uso, abstraímos também de todos os elementos materiais e formais que lhe conferem esse valor. Já não é, por exemplo, mesa, casa, fio, ou qualquer outro objecto útil; já não é também o produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro, de qualquer trabalho produtivo determinado. Juntamente com os caracteres úteis particulares dos produtos do trabalho, desaparecem o trabalho útil dos trabalhos neles contidos e as diversas formas concretas que distinguem as diferentes espécies de trabalho Apenas resta, portanto, o carácter comum desses trabalhos; todos eles são reduzidos ao mesmo trabalho humano, [trabalho humano abstracto,] a um dispêndio de força humana de trabalho, independentemente da forma particular que revestiu o dispêndio dessa força.” [11] “Indiferente à substância particular dos valores de uso, o trabalho que cria o valor de troca é igualmente indiferente à forma particular do próprio trabalho.” Sendo então, o “trabalho criador do valor de troca ... o trabalho geral abstracto.”[12] O trabalho geral abstracto é a substância do valor de troca e o seu padrão de medida é o tempo. O modo quantitativo (passível de medição) de existência do trabalho é o tempo de trabalho. “O tempo de trabalho materializado nos valores de uso das mercadorias é ao mesmo tempo a substância que faz delas valores de troca, logo mercadorias”[13] É exactamente porque na “própria relação de troca das mercadorias o seu valor de troca [nos] aparece.. como algo de completamente independente dos seus valores de uso”[14] que se pode dizer que, enquanto “valores de troca, todas as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho coagulado.” [15] Do “mesmo modo que nos valores” das mercadorias “se abstrai da diferença dos seus valores de uso, igualmente se abstrai, no trabalho que estes valores representam, da diferença das suas formas úteis”[16]. Parece assim existir um duplo carácter do trabalho, já que o mesmo trabalho se apresenta na mercadoria “sob dois aspectos opostos, conforme se reporte ao valor de uso da mercadoria como seu produto, ou ao valor dessa mercadoria, como pura expressão objectiva. Todo o trabalho é por um lado, dispêndio, no sentido fisiológico, de força humana, e é nesta qualidade de trabalho igual, [abstracto,] que ele constitui o valor das mercadorias. Todo o trabalho é, por outro lado, dispêndio da força humana sob esta ou aquela forma produtiva, determinada por um objectivo particular, e é nessa qualidade de trabalho concreto e útil que ele produz valores de uso ou utilidades.”[17] Assim, “enquanto que o trabalho criador de valor de troca é um trabalho geral, abstracto e igual, o trabalho criador de valor de uso é, por seu lado, um trabalho concreto e particular que, consoante a forma e a matéria, se divide numa variedade infinita de géneros de trabalho.”[18] A diferença entre “trabalho útil” e “trabalho geral abstracto” é dada como diferença entre um trabalho necessário, de transformação da matéria e cujo fim visa a necessidade particular e um trabalho social, de transformação do objecto em mercadoria cujo fim visa a troca social das mercadorias. “Se portanto, quanto ao valor de uso, o trabalho contido na mercadoria apenas é relevante qualitativamente, já no que se refere à grandeza do valor, ele apenas releva quantitativamente [uma vez que já foi reduzido a trabalho humano puro e simples]. No primeiro caso, trata-se de saber como se processa o trabalho e o que é que produz: no segundo, trata-se de saber a quantidade, a sua duração.”[19]
1.3. A forma do valor na troca e a equivalência Podemos então dizer que a substância do valor na mercadoria é o trabalho útil qualitativo (de transformação da matéria e cujo fim é dado pelas necessidades particulares) e que a grandeza do valor é o trabalho geral abstracto quantitativo, medido em unidades de tempo (social e cujo fim é a troca de mercadorias). Resta agora analisar a forma do valor. Todas as mercadorias apresentam-se sob um duplo aspecto: como objectos de uso e como suportes de valor, só podendo entrar em circulação “na medida em que se apresentam sob uma dupla forma: a sua forma natural e a sua forma valor.”[20] Sabemos também que o valor das mercadorias é uma realidade puramente social que apenas se manifesta “nas transacções sociais, nas relações das mercadorias umas com as outras.”[21] Pelo que a única relação entre as mercadorias é uma relação de valor. Existem, assim, dois pólos na expressão do valor, a sua forma relativa e a sua forma de equivalente. A forma relativa determina que uma qualquer mercadoria só pode exprimir-se relativamente a uma outra mercadoria que se lhe apresenta como equivalente. Pelo que a forma relativa do valor é dada pela mercadoria cujo valor se exprime e a forma equivalente do valor é dada pela mercadoria na qual se exprime o valor. Supondo duas mercadorias A e B, na qual A é a mercadoria que relacionada com B exprime o seu valor e B é a mercadoria cujo valor é equivalente a A. “Em virtude da relação de valor, a forma natural da mercadoria B torna-se forma-valor da mercadoria A, ou melhor, o corpo de B torna-se no espelho do valor de A. O valor da mercadoria A, assim expresso no valor de uso da mercadoria B, adquire a forma valor relativa.”[22] Verifica-se que na relação do valor, “mudanças reais na grandeza do valor não se reflectem nem claramente nem completamente na expressão relativa [ou na grandeza do valor relativo]. O valor relativo de uma mercadoria pode variar, embora o seu valor permaneça constante; pode permanecer constante, embora o seu valor varie; e, finalmente, podem verificar-se variações simultâneas da grandeza de valor e da sua expressão relativa sem que exista correspondência entre elas”[23] “Uma mercadoria é imediatamente permutável por qualquer outra de que seja equivalente”, não “precisa de revestir uma forma diferente da sua forma natural para se manifestar como valor à outra mercadoria, para valer como tal e, portanto, para ser permutável com ela.”[24] O equivalente figura sempre na relação como simples quantidade de uma coisa útil. Sob “a forma de equivalente, uma mercadoria figura como simples quantidade de uma matéria qualquer, precisamente porque a quantidade do seu valor não é expressa.”[25] Na forma de equivalente de uma mercadoria surgem três transformações paralelas: o valor de uso torna-se a forma de manifestação do valor; o trabalho concreto torna-se a forma de manifestação do trabalho abstracto; e finalmente o trabalho privado, toma a forma de trabalho social. “Na medida em que se desenvolve a forma valor em geral, desenvolve-se também a contradição entre os seus dois pólos: valor relativo e equivalente.”[26] Sob a forma mais desenvolvida do valor, a forma equivalente geral é a forma do valor em geral. Uma “mercadoria só pode encontrar-se sob esta forma (...), porque e na medida em que ela própria é excluída por todas as outras mercadorias, como equivalente. E só a partir do momento em que este carácter exclusivo se fixa definitivamente numa espécie de mercadoria, é que a forma valor relativa [unitária do mundo das mercadorias] ganha consistência objectiva, adquirindo validade social universal.”[27] “A mercadoria excluída como equivalente geral é, nesse momento, o objecto de uma necessidade geral engendrada pelo próprio processo de troca e tem para todos o mesmo valor de uso: é o suporte do valor de troca, é meio de troca geral. Assim se encontra resolvida, nesta mercadoria, a contradição que a mercadoria encerra em si: como valor de uso particular a mercadoria é simultaneamente, equivalente geral e, por conseguinte, valor de uso geral.”[28] “A mercadoria particular que representa assim o modo de existência adequado do valor de troca de todas as mercadorias sob a forma de uma mercadoria particular, exclusiva, é... o dinheiro. Ele é uma cristalização do valor de troca das mercadorias, produzida por estas no próprio processo de troca.”[29] O dinheiro apresenta como propriedades (valor de uso) a divisibilidade, a homogeneidade das partes, a identidade e a durabilidade, numa palavra propriedades quantitativas duráveis. Quanto mais longa for a série dos seus equivalentes ou quanto mais longa for a esfera de troca, maior o valor de troca da mercadoria e o dinheiro parece ter tudo isso. Deste modo o mundo das mercadorias pressupõe uma divisão desenvolvida do trabalho, manifesta de forma imediata na diversidade dos valores de uso que se defrontam como mercadorias particulares e que encerram uma igual diversidade de géneros de trabalho.
“[O carácter misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que ela apresenta aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como se fossem características objectivas dos próprios produtos do trabalho, como se fossem propriedades sociais inerentes a essas coisas; e portanto, reflecte também a relação social dos produtores com o trabalho global como se fosse uma relação social de coisas existentes para além deles.]”[30] A relação social determinada entre os homens adquire aos seus olhos “a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.” O conjunto dos trabalhos privados constituem, pela troca dos seus produtos, “fracções do trabalho social global”.[31] “Daí resulta que para estes últimos {produtores}, as relações [sociais] dos seus trabalhos privados aparecem tal como são, ou seja, não como relações imediatamente sociais entre pessoas nos seus próprios trabalhos, mas antes como [relações materiais entre pessoas e] relações sociais entre coisas.”[32] Ora a “igualdade dos trabalhos que diferem inteiramente uns dos outros só pode consistir numa abstracção da sua desigualdade real, na redução ao seu carácter comum de dispêndio de força humana, de trabalho humano abstracto”[33]. Dai que o “duplo carácter social dos trabalhos privados apenas se reflecte no cérebro dos produtores sob as formas em que se manifestam, no tráfico concreto, na troca dos produtos; [o carácter socialmente útil dos seus trabalhos privados, no facto de o produto do trabalho ter de ser útil, e útil aos outros; e o carácter social de igualdade dos diferentes trabalhos, no carácter comum de valor desses objectos materialmente diferentes, os produtos do trabalho.]” Ao considerarem iguais na troca (ou socialmente) os diferentes produtos, os seus produtores (a totalidade dos elementos da sociedade) pressupõem que os seus diferentes trabalhos são iguais. Por outro lado “o carácter de valor dos produtos do trabalho só se fixa quando eles se determinam como grandezas de valor. Estas últimas mudam sem cessar, independentemente da vontade e das previsões daqueles que trocam mercadorias, aos olhos de quem o seu próprio movimento social toma assim a forma de um movimento de coisas, movimento que os dirige em vez de serem eles a dirigi-lo.”[34] Ora “é precisamente esta forma acabada do mundo das mercadorias, a sua forma-dinheiro, que, em vez de revelar, dissimula o carácter social dos trabalhos privados e as relações sociais entre os produtores.” Concluindo que as “categorias da economia burguesa são formas de pensamento que têm uma verdade objectiva, enquanto reflectem relações sociais reais, mas estas relações pertencem somente a esta época histórica determinada, em que a produção mercantil é o modo de produção social. Se encararmos outras formas de produção, logo veremos desaparecer todo este misticismo [sortilégio e magia] que obscurece os produtos do trabalho no período actual.”[35]
2. Crítica da mercadoria marxista:
Marx divide a mercadoria em dois aspectos distintos e complementares expressos em valores: o valor de uso e o valor de troca, assimilando a estes dois factores a ideia de substância ou qualidade e de forma ou quantidade.
2.1. O sistema da utilidade e a construção do real: Segundo Marx, o valor de uso é independente da mercadoria, na medida em que um objecto pode ser útil e conter trabalho humano concreto sem ser uma mercadoria, isto é, sem necessitar de ser permutado com outro. Assim o valor de uso tem uma característica extensiva a quase todos os objectos ou eventos, já que ultrapassa a própria especificidade social onde se inscreve. Repare-se que ao fazer isto, o valor de uso torna-se uma espécie de entidade universal abstracta e delimita o campo de actuação do valor de troca e da mercadoria. A sua formalização é imediatamente a sua metamorfose em valor de troca e a consequente transformação do seu suporte em mercadoria. Mas ao separar o valor de uso, da mercadoria, ao dar-lhe uma existência para lá, e/ou para cá, da sociedade histórica concreta, separa também a utilidade como característica imanente do suporte material do valor de uso e paralelamente a necessidade transportada pelo ser e que dá fundamento ao próprio valor de uso. O cuidado com que afirma a universalidade do valor de uso, espelha-se inclusivamente na própria separação daquele em relação ao trabalho, o que só confirma a ideia de que ele é independente da forma social e abre caminho para a possibilidade de uma transcendência histórica, um para lá da história. O certo é que Marx associa de modo explícito o valor de uso às propriedades materiais do seu suporte e às necessidades humanas. Deste modo, sendo as propriedades materiais que determinam o valor de uso, reduz-se a coisa ou o evento à sua utilidade. A utilidade por seu lado, refere-se a um princípio de servidão da coisa ou do evento face às necessidades humanas. Ora é exactamente aqui que é necessário ir mais longe que o próprio Marx, e notar que o próprio valor de uso é já uma determinação formal da sociedade capitalista. A coisa ou o evento mobilizados pelas meras necessidades humanas na utilidade é já uma componente (ideológica e estrutural) da sociedade que Marx procura criticar[36]. Como, já vimos, o valor de uso correlaciona uma substância humana (espelhada nas necessidades) e uma forma material (espelhada nas propriedade das coisas). Todo o valor de uso junta qualidades materiais com necessidades e forma um valor, o da utilidade ou uso. A instauração do sistema de utilidades, a fundação do uso como valor não é o simples consumo, a simples destruição ou transformação de uma coisa ou evento, mas o uso dessa coisa ou evento como correlação entre dois pólos muito específicos. A criação do sistema da utilidade e do uso, é a mobilização do uso como relação entre o homem e o mundo, entre a sociedade e a natureza. É a hierarquização do uso como sistema de correlação, entre o homem e o mundo, entre a sociedade e a natureza que lhe dá valor. O valor é um compromisso entre a sociedade e a natureza, se assim me posso exprimir, mas é sobretudo uma mobilização e uma domesticação (parcial pelo menos) deste ou daquele aspecto considerado como pertencente à natureza. A natureza sendo, em parte, o que define a sociedade, o que a limita e lhe dá os contornos, não está completamente fora do social ela baseia-o como o branco permite a visão do preto, como a morte permite a vida (e obviamente, verso e anverso, a vida permite a morte, etc.). Como tal, se o valor é atribuído pela sociedade ou pela comunidade humana, algo naquele valor tem forçosamente um substrato considerado natural. Isto é, algo em todo o valor transporta um substrato da natureza e da morte, como negação da descontinuidade social e individual, tal como transporta um substrato da sociedade e da vida como afirmação daquela descontinuidade, gerando assim uma ilusão que dá a ver (formaliza) a vitória da vida sobre a morte. Por outras palavras, a criação de um valor em geral implica o confronto de dois pólos em que um representa a vida e o outro a morte (guardadas as devidas proporções pelas suas representações sociais), mas não seria valor se existisse uma vitória absoluta de qualquer dos pólos[37]. A sociedade humana sempre foi e não será demais afirmar, que sempre será, um compromisso com a natureza, tal como a vida é um compromisso com a morte. A melhor forma que a sociedade tem de prorrogar o prazo dessa “pena suspensa” é integrando a morte e a natureza na vida e na sociedade, mas dando-lhe um carácter diferenciado, em geral, sagrado. Talvez por essa razão não encontramos sociedades sem religião. O sagrado introduz-se geralmente na sociedade como um espaço sem história e sem tempo, um espaço imaginário. Mesmo quando parte da sua liturgia passa pela história humana, o sagrado está ausente do tempo humano finito, ele é sempre infinito (quer sob a forma de uma circularidade, quer sob a forma de uma linearidade de estados sucessivos sem fim). Diremos então que o aparecimento do uso como valor e a posterior criação de um sistema de utilidade do objecto, implica uma certa sacralização da relação entre qualidades de serventia da coisa e necessidades do homem[38]. Tal sacralização implica também uma alteração à ordem anterior, isto é, implica uma alteração do sistema simbólico, subjacente à ordem social anterior, produzindo um outro sistema de construção de um novo real[39]. O movimento da “complementaridade separada”, o movimento do sym-bolon[40], é o da unidade que pressupõe uma cisão. A separação é a condição geral e necessária da humanidade (a sua absoluta descontinuidade) e a unidade é dada pelo sacrifício e pela morte que une o descontínuo na continuidade do mundo. Ambos os estados, a separação e a união são necessários para que o tempo realize o seu eterno retorno (a sua continuidade infinita). No sym-bolon encontram-se separadas a forma simbolizante, que é o seu aspecto manifesto (material ou sensorial) e o simbolizado que constitui o seu horizonte de sentido (e que regra geral está para lá do mundo humano). O mundo é um enigma de que se possuem algumas chaves sensoriais (formas, figuras, traços, indícios, etc) mas onde o segredo nunca é revelado no homem, está sempre para lá do homem. Perante as entranhas e as vísceras da ave ou do animal podemos ler certos presságios, mas nunca existe uma coincidência imediata entre a interpretação e o real. Se é sempre no mundo (nas coisas e nos animais) que o sentido se manifesta, porque aqueles transportam, como imanência, a transcendência do sentido, isto é, o sentido é sempre transcendente ao homem. Por outras palavras o real não é nunca considerado como determinado pelo homem ele é um dado que quanto muito solicita interpretações. A possibilidade de interpretação é dada pela manifestação do real (ou da verdade se quisermos) nas coisas, são as coisas e o mundo que transportam a verdade. Mas a verdade e o real não são coisa comum, nem se manifestam de forma contínua, são um luxo, pois implicam sempre uma aproximação à morte, através da violência. São os sacrifícios que permitem ver o real, é na destruição (de figuras simbólicas) ou na morte (de animais ou de pessoas) que a continuidade do real se manifesta[41]. Ora é exactamente, esta ordem que o valor de uso procurará transformar e para isso serve-se do mesmo movimento mas desloca os seus pólos. Como já referi, trata-se de um movimento que procura através da experiência recriar o real servindo-se do movimento simbólico, isto é, agora a sua substância encontra-se na própria experiência, no próprio acto de apropriação, numa palavra, na satisfação (unidade) da necessidade (cisão) interior. O seu horizonte reduz-se e fica-se pela experiência do indivíduo. A experiência do uso é uma experiência particular, individual e aí, nesse pequeno mundo da “experiência interior” adquire a sua verdade. A satisfação e a ausência, ainda que temporária, de necessidades é o que se aproxima do resultado do sacrifício antigo. A sensação de continuidade com o mundo é assim transportada para o interior do indivíduo (tal como a alma) e para as particularidades úteis das coisas e dos eventos. Aliás o movimento é sempre concêntrico, pois se o homem procura a sua satisfação nas qualidades dos objectos, estas são, sempre, as qualidades úteis à satisfação das necessidades daquele. Existe assim, no valor de uso, um destino igualmente latente, de cisão e de unidade, mas agora é idealizado no próprio corpo do homem e das coisas. O que se perde é a transcendência do símbolo, o apontar a união para lá do mundo. De certo modo o valor de uso transporta a morte para dentro de cada um dos indivíduos, na medida em que é a experiência de apropriação que resulta na plenitude. Mas, ao colocar o movimento simbólico neste nível, aquilo que era uma partilha das comunidades, com a consequente dádiva do sacrificado, passa a ser uma coisa individual, que todos temos e sabemos que outros partilham, mas que é, agora, eminentemente individual e secreta. Ao contrário de algumas teorias modernas e pós-modernas, que apregoam o fim do simbólico, a estrutura simbólica e o seu movimento, não desaparecem apenas são desviados e mobilizados pelo valor de uso que, deste modo, constrói a nova realidade moderna[42]. Todas as coisas são assim mobilizadas pelo sistema da utilidade, todas as coisas ou eventos só têm valor desde que o seu estatuto seja o de serventia, de utilidade face ao indivíduo e à sociedade, a serventia das coisas é o seu carácter sagrado (com as devidas proporções). Este facto é de tal modo forte, que para lá do uso, nada mais é realmente universal como Marx o sentiu. Mas tal como as coisas e os eventos se mobilizam, nas suas qualidades úteis, também o homem se liberta das regras anteriores e adquire novas regras. O homem das necessidades, o homem que procura a satisfação, é doravante o condenado por si próprio e pelo seu próprio corpo[43]. Ora, é porque o valor de uso assume um carácter simultaneamente individual e secreto (intimo em certos casos), e porque as necessidades são como todos sabemos uma base frágil e movediça que o valor de troca se torna uma necessidade. É o valor de troca que restabelece o que se perdeu da ligação comunitária do movimento simbólico. O sistema do uso instala a individualidade e a solidão do ser, criando a angústia de se saber possuído por uma necessidade movediça e sem objecto delimitado a priori. O valor de troca vem realizar as selecções, ou as delimitações quer nas necessidades quer nas qualidades objectivas agora sacralizadas. Assim e para concluir esta fase intermédia da análise, o valor de uso pode apresentar-se como uma coisa-valor universal, pronta a ser usado pelo valor de troca, as suas substâncias, a necessidade humana e as qualidades objectivas estabelecem uma relação de equivalência separada (movimento simbólico) entre duas formas relativas (relativas uma em relação à outra) e possibilitam a disponibilidade para a troca.
2.2. O sistema da permuta e a construção social. Conforme Marx se apercebeu, a mercadoria parece apresentar uma oposição interna manifestada no duplo carácter do trabalho, tanto o trabalho na sua abstracção e generalização é puro dispêndio de energia (humana ou não) quantificável em tempo, como o trabalho no seu carácter concreto e particular é produtor de valores de uso. Esta diferença entre “trabalho útil” e “trabalho geral abstracto” é a diferença entre a criação da necessidade e do valor de uso através da qualificação da mercadoria e a criação do valor de troca dado pela quantidade de energia dispendida na transformação da matéria. O primeiro qualifica e distingue a mercadoria das restantes o segundo quantifica-a no conjunto das mercadorias. Deste modo a mercadoria tem como substância o seu valor de uso e como forma o seu valor de troca. O trabalho “útil” realiza uma dupla transformação, por um lado qualifica, isto é, selecciona e enfatiza determinadas qualidades da matéria (transformando-a em objecto de uso), por outro dá-lhe a componente simbólica necessária como dádiva (transformando-a em objecto necessário)[44]. Isto é, o trabalho “útil”, o trabalho específico é quem permite a passagem da mercadoria para a troca, é, numa palavra, o que consubstancia o valor de troca. Por um lado é o sistema de selecções e enfatizações que forma o carácter ideológico criador dos diferenciais qualitativos e estatutários, por outro essas selecções só adquirem valor qualitativo porque se inserem num sistema de dádiva. A dádiva que anteriormente se confunde com a destruição pura e simples, é agora a destruição da posse do produto do trabalho pelos seus produtores (aquilo que Marx designava como alienação do trabalho). A questão da dádiva não parece até agora ter merecido grande atenção por parte dos diversos estudos marxistas, mas parece-me que nada melhor do que esta justifica a propensão “irracional” para o consumo e para o trabalho (mesmo que explorado), sobretudo por parte daqueles que não detêm quase nenhum poder estatutário. É a honra, como refere Mauss, que está em causa. A troca recebe assim o seu valor do sistema das utilidades, o seu papel é o da hierarquização quantitativa do valor qualitativo. O modo como a troca realiza a hierarquização prende-se com o entrelaçamento entre o sistema de selecções (do valor de uso) que qualificam a mercadoria e a quantidade de tempo de trabalho dispendida como dádiva. Ora, se inicialmente o tempo de trabalho prevalece, numa lógica aritmética dos valores da dádiva (como tempo de trabalho perdido na transformação da matéria), posteriormente e com o desenvolvimento técnico responsável pela mecanização do processo produtivo, certas mercadorias assumem o papel de fundação abstracta do real, isto é, tornam-se acumulações que misturam inextrincavelmente a dádiva com a qualificação, é o caso das obras de arte. Estas mercadorias adquirem por si só o topo da hierarquia do valor social de troca, mas a sua particularidade ou a sua função social é sempre a de estabelecer o valor estatutário do seu possuidor. Contrariamente ao que Baudrillard diz, o leilão não escapa ao valor de troca social ou à concorrência económica, pois é na retribuição da dádiva, no valor dispendido na compra dessas mercadorias que se joga o valor estatutário e a hierarquia social. O leilão de obras de arte, não faz mais do que confirmar o poder da dádiva no sistema das utilidades pela sua transformação, no topo da pirâmide social, em valor de troca económica. O facto de o valor ser por vezes astronómico, mesmo impensável para o comum cidadão é a confirmação de que acima do mero aspecto aritmético está a honra do estatuto social, é por isso a confirmação da ideologia económica (pois é essa que é destruída). Mas, voltando um pouco atrás, analisamos o sistema formal da equivalência em Marx, o sistema gerador do dinheiro como mercadoria da equivalência. Segundo Marx a única relação entre as mercadorias é uma relação de valor. Sendo assim todas as mercadorias se confrontam como valores, isto é, só se podem exprimir como tal desde que confrontadas entre si. Mas o que se confronta entre duas mercadorias não é simplesmente um valor abstracto, entre si as mercadorias estabelecem um sistema espectral, pois se a forma relativa do valor é dada pela confrontação com a forma de equivalente é porque a primeira é o original que se reflecte na segunda. É exactamente como valor espectral que Marx determina o dinheiro, pois o dinheiro é a mercadoria que reflecte o valor de todas as outras mercadorias originais. A “forma de equivalente” é assim uma abstracção do valor de uso. É sempre o valor de uso que é valor real o valor de troca é o valor virtual. Mas como valor virtual, ou como virtualidade ele é a possibilidade do valor real (assume-se aqui que a realidade é a simples transformação do mundo pelo sistema das utilidades, conforme já tive ocasião de demonstrar). Ele é a possibilidade do valor de uso, exactamente pelo seu carácter de permuta. Não é só o valor de uso que se instala como justificação para o valor de troca, a relação é reversível. Pois o sistema de utilidades só assume carácter social, só se instala como sistema, quando confirmado pelo valor de troca, reciprocamente sem o valor de uso como transformação simbólica do real, o valor de troca não tem existência, não tem substância real de que é o espectro. O poder espectral do dinheiro é o seu valor como virtualidade de todo o valor social real. A qualidade de virtualidade do dinheiro é o espelho da virtual possibilidade de tudo se transformar em valor de uso, pela impossibilidade de limitar as selecções e enfatizações, bem como pela impossibilidade de limitação das próprias necessidades. O dinheiro assume assim todas as características pois ele é mero espelho, a própria materialidade do dinheiro e as suas características “naturais”, são mobilizadas para a sua característica espectral e para a virtualidade. Não existe nenhum mistério na forma da mercadoria, ela vale-se tanto do original como do espectral. A manutenção da ideia de original, de uma natureza utilitária e de necessidades naturais é a manutenção do próprio sistema de transformação do real, o valor de troca só mobiliza esse real para a forma social. A experiência dos países ditos de “socialismo real”, foi apenas a forma crítica de encarar o valor de troca, mas exactamente porque as selecções (no valor de uso) foram limitadas (na sua troca) inviabilizaram a abertura política e porque a dádiva foi concentrada no estado o poder foi centralizado até à ditadura. Mas exactamente porque não foi instaurado um novo tipo de transformação do mundo, uma nova criação de real, isto é, porque se mantiveram fiéis ao sistema de utilidades e a essa visão simbólica do mundo, acabaram por enfraquecer tanto o sistema social como a sua economia até à derrocada. Na verdade o socialismo real acabou por ser, como o viram os últimos defensores do valor de uso transcendente e universal, os situacionistas, o “capitalismo burocrático”[45] ou centralizado. [1] Karl Marx, Contribuição para a Crítica da Economia Política, Editorial Estampa, Colecção Teoria nº 8, Lisboa, 1977, pág. 35 [2] Idem pág. 36 [3] Idem pág. 43 [4] Karl Marx, O Capital, Livro 1 – 1º volume – 1ª e 2ª secções, Editora Centelha – Promoção do Livro, SARL, Coimbra, 1974, pág. 48. [5] Idem pág. 49 [6] Idem págs. 57-58 [7] Karl Marx, Contribuição para a Crítica ... págs. 43-44 [8] Karl Marx, O Capital, I - 1º Vol. (1ª e 2ª sec), pág. 59 [9] Idem pág. 36 [10] Karl Marx, O Capital, I - 1º Vol. (1ª e 2ª sec), pág. 51 [11] Idem pág. 52 [12] Karl Marx, Contribuição para a Crítica ... pág. 37 [13] Idem 37-38 [14] Karl Marx, O Capital, I - 1º Vol. (1ª e 2ª sec), pág. 53 [15] Karl Marx, Contribuição para a Crítica ... pág. 38 [16] Karl Marx, O Capital, I - 1º Vol. (1ª e 2ª sec), pág. 64 [17] Idem pág. 67 [18] Karl Marx, Contribuição para a Crítica ... pág. 43 [19] Karl Marx, O Capital, I - 1º Vol. (1ª e 2ª sec), pág. 65 [20] Idem págs. 68-69 [21] Idem pág. 69 [22] Idem pág. 78 [23] Idem págs. 81-82 [24] Idem pág. 83 [25] Idem pág. 84 [26] Idem pág. 105 [27] Idem pág. 107 [28] Karl Marx, Contribuição para a Crítica ... pág. 55 [29] Idem págs. 55-56 [30] Karl Marx, O Capital, I - 1º Vol. (1ª e 2ª sec), pág. 112 [31] Idem pág. 113 [32] Idem págs. 113-114 [33] Idem págs. 114-115 [34] Idem pág. 117 [35] Idem pág. 119 [36] Naturalmente que se torna mais fácil, hoje e após o funcionalismo moderno, notar esta questão e só muito dificilmente é que Marx o poderia ter percebido. [37] A morte, ou aquilo que a representa naquele contexto, nunca desaparece, regressando sempre após a sua derrota temporária. Se as batalhas são sempre ganhas, a guerra é no fim sempre perdida, mas esta derrota sendo definitiva a nível individual e social, nunca pode ser absoluta. Mesmo na morte o ser deve viver, mesmo nas derrocadas sociais o ser deve continuar, essa é a regra que permite a continuidade da espécie. Parecendo paradoxal, a morte tem de estar sempre presente pois sem ela não existe vida. Porque desconhecemos realmente a morte, mas a sua presença é uma das poucas certezas que temos, a morte é aquilo que é mistificado, tornando-se o sagrado. [38] Qualquer semelhança entre estes factos e a história medieval não é pura coincidência. Veja-se por exemplo a progressiva transformação das relações feudais em relações mercantis, o próprio nascimento do Barroco, etc. [39] O real é sempre uma construção parcialmente humana. [40] Que significa “aquilo que foi lançado conjuntamente e que no fim se voltará a unir”. [41] Sobre este assunto, Roger Calois, L’homme et le Sacré, Ed. Gallimard, 1950, ou Georges Bataille, O Erotismo, Edições Antígona, Lisboa, 1988. Embora não esteja de acordo com a teoria de Bataille sobre a interdição como forma do sagrado, pois as suas referências pressupõe um espaço não sagrado como licenças, quando realmente o que o sagrado faz é as duas coisas, o que ele instaura é sempre uma polarização entre o mal e o bem, isto é, tanto constrói o bem como constrói o mal. [42] É absurdo dizer que o simbólico desapareceu, como o faz Jean Baudrillard, Para uma crítica da Economia política do signo, Ed. 70, Lisboa, 1981, pois o que desapareceu foi um dos modelos antropologicamente conhecidos do simbólico, o movimento que instaura o simbólico continua activo e é, segundo me parece impossível de exterminar, pois ele é a marca da humanidade, como o viu Ernst Cassirer, Ensaio sobre o homem, Guimarães Editores. Lisboa, 1995. [43] Sendo a servidão voluntária a sua única realidade. Sobre este assunto Étienne de La Boétie, Discurso sobre a servidão voluntária, Edições Antígona, Lisboa, 1997. [44] Sobre o sistema da dádiva a obra de Marcel Mauss, Ensaio sobre a Dádiva, Ed. 70, Lisboa, 2001, continua a ser fundamental. [45] Sobre o mito do valor de uso como verdade da relação do homem com o mundo, Guy Debord, A Sociedade do Espectáculo, www document. |
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09-05-2003